Manuel Matola
O embaixador guineense Apolinário Mendes de Carvalho, um dos académicos mais destacados no estudo das dinâmicas da diáspora africana, lança o livro intitulado “Fragilidades dos Estados e os Desafios da (Re)construção e da Cooperação”, uma visão africana para uma problemática que atravessa séculos de debate que mais “acontece no Ocidente”, apesar de ser tema atual em África onde “as contribuições dos investigadores africanos não têm sido capazes de influenciar de forma significativa o debate académico sobre a fragilidade dos Estados”, diz em entrevista ao jornal É@GORA o cientista político, então representante da Guiné Bissau junto da CPLP, na União Europeia e do Sistema das Nações Unidas em Genebra. Na obra, sob chancela da Nimba edições, Apolinário Mendes Carvalho procura ao longo de mais de uma centena de páginas, divididas em quatro capítulos, dar “muita atenção” à discussão dos conceitos sobre Estados falhados versus Estados frágeis, temas que até nos “Média” são abordados de forma “completamente desajustados”. É neste contexto que o autor aponta os fatores das fragilidades dos Estados e, “envolvendo vários investigadores importantes”, remete à responsabilização interna e externa dos Estados do debate cujas propostas de solução para os vários desafios da cooperação internacional podem estar na reconfiguração da Ordem Mundial resultado da guerra na Ucrânia, em que a Rússia e a China se assumem como protagonistas no continente africano face ao futuro incerto da hegemonia norte-americana e da União Europeia.
“As contribuições dos investigadores africanos não têm sido capazes de influenciar de forma significativa o debate académico sobre a fragilidade dos Estados. Esta é uma das motivações minhas de pretender dar alguma contribuição nesse debate, tentando apresentar uma visão que eu considero africana, sendo eu como investigador africano, numa problemática que considero ser das mais fundamentais para o funcionamento do sistema internacional. (Isso) porque nós sabemos inclusive que neste debate também acontece muita coisa e África tem estado algo como na defensiva, não aceitando os conceitos e a forma como ele é abordado, nomeadamente, aquilo que tem com os Estados falhados e Estados frágeis e, porque, de facto, entendem que este conceito é impreciso. Eu também acho que sim”, diz.
Porquê?
Porque quando falamos de um Estado falhado não estamos a falar de uma unidade viva. Uma sociedade não é uma empresa, não é uma perspetiva liberal no sentido de uma empresa que existe, falhou e vai ser fechada. E também é preciso também analisar bem este conceito tem a ver com o quê. Tem a ver com problema de governança, controlo do território, com a própria autoridade do Estado, mas são problemas que podem ser solucionados. Não são o fim. Mas também sabemos que as trajetórias de muitos Estados, inclusive europeus, passaram por muitas fases, outras iguais àquelas que nós estamos a passar nesse momento. Portanto, é fundamental analisar que quando se aborda essa problemática dos Estados não é a mesma coisa que aquilo que a visão neoliberal nos ter feito entender que são como empresas (que) são analisadas, falharam por este ou aquele motivos. É preciso respeitar a trajetória histórica das sociedades e dos Estados. A própria União Africana e o Observatoire de l’Afrique, que é um jornal importante, reconhecem que o essencial deste debate acontece no Ocidente e ele tem omitido em larga escala aquilo que é o ponto de vista africano. Mas a contribuição africana também do ponto de vista de investigação não tem sido muito.
E há uma outra razão, a quarta…
É que a (re)construção dos Estados no quadro da ação global contra a ameaça da paz, a estabilidade e a segurança continua a colocar sérios desafios e dilemas sobre a modalidade, formas, objetivos, eficiências e resultados das intervenções externas (que de resto) acontece. Há um consenso universal neste momento de que as fragilidades dos Estados devem merecer atenção, mas a forma como ela acontece, sobretudo, as intervenções externas para a (re)construção dos Estados têm falhado. É por isso que os statebuilding não tem dado resultados. Nós temos até algumas dificuldades até ao nível de peacebuilding, mas sobretudo a nível do statebuilding tem falhado. Há um esforço dos nossos governos no sentido de reconstrução, portanto, há um debate se os nossos Estados estão em construção ou eles devem ser reconstruídos depois de existirem e perderem capacidade e falharem.
Qual é a sua opinião?
Eu penso que nós estamos construindo Estados. Analisando a trajetória histórica da construção do Estado em várias partes do mundo, nós estamos numa fase de construção. Essa construção foi afetada por muita coisa: pelo contexto pós-independência, o contexto da Guerra Fria e, depois, pela forma como as intervenções externas aconteceram. Mas nesse quadro jogam-se sempre dois fatores importantes de fragilidade dos Estados: os endógenos e os exógenos. Muitas vezes nesse debate procura-se sobretudo a perspetiva ocidental da abordagem dar maior ênfase aos fatores endógenos. Mas é importante ver também que os impactos dos fatores exógenos são grandes, sobretudo, analisando o que aconteceu durante a Guerra Fria – a forma como foram criadas as cooperações, as próprias independências, as dificuldades do relacionamento comercial em relação à dependência de matérias primas instaladas e investigadas pelas forças coloniais até nós chegarmos no pós-Guerra Fria com o recuo dos interesses estratégicos, as mutações que a ajuda internacional teve e, sobretudo, a nova intervenção externa que foi focada na ação do FMI e do Banco Mundial, as chamadas reformas económicas neoliberais, a própria democratização liberal. Essas reformas não contribuíram para aumentar a capacidade dos Estados africanos. Na maior parte dos casos nos experimentamos situações de fragilidades que nos mais débeis [Estados] até se aprofundou.
Mas não há uma co-responsabilidade dos Estados do Sul Global na forma como acordaram sobretudo naquilo que era suposto ter dado um resultado diferente?
Penso que há co-responsabilidade. Mas o próprio conceito do que chamou de Sul Global já não é o mesmo. O Sul Global quando os nossos Estados estiveram em luta por uma Nova Ordem Económica Internacional eram o grupo dos Não Alinhados etc. Hoje o grupo do Sul Global tem interesses diferentes: os interesses dos países asiáticos não são os mesmos dos de países as africanos e também dos países as africanos não são iguais os dos países da América latina. África tem que se encontrar. Os dirigentes africanos têm responsabilidades. Eu defendo a questão da própria endogeinização, a questão de África encontrar estratégias próprias. Não há nenhuma cooperação externa hoje que possa trazer apenas benefícios para os Estados africanos. Nós temos que construir as nossas estratégias, analisar as nossas capacidades. Tudo isso é analisado no livro [especialmente] a forma como África pode e deve se posicionar nessa questão. Nós, de facto, precisamos estar capazes e fortes. Eu defendo o conceito do Estado Suficiente.
E o que é um Estado Suficiente?
É precisamente um Estado que tem a capacidade, de acordo com aquilo que é a realidade interna de poder responder a todas as etapas de desenvolvimento.
Como assim?
Porque quando nos dizem [ideologicamente que deve haver] menos Estado nós já verificamos que o menos Estado não pode funcionar. Também não precisamos de um Estado que não deixa espaço para nenhum outro ator. Mas o Estado tem que ser capaz de responder a todos os desafios e de acordo com a própria capacidade interna. Se o setor privado achar que o Estado tem que intervir para o ajudar, o Estado tem que ser capaz de intervir forte quer na Educação, Saúde, se de facto não há atores, mas reparando sempre que se [não] houver outros atores poderá ele engajar e se ocupar de outra forma. O Estado deve estar na vanguarda. Portanto, o conceito do Banco Mundial e o FMI nos trouxe no programa de ajustamento estrutural de desmantelar o Estado na etapa do desenvolvimento em que nós estamos e estávamos mostra que a sua estratégia falhou. Depois disso, o Banco Mundial começou com o combate à pobreza, [a seguir foi o] ajustamento do ajustamento e todas as estratégias foram sendo goradas. E até hoje não deu resultado. E, em 2008, a crise Europeia da dívida soberana mostrou claramente que afinal mesmo estes Estados precisavam de um Estado forte e capaz para poderem avançar quando há duas décadas nos estavam a impingir uma coisa completamente diferente. Hoje os nossos países precisam de um Estado capaz: com visão estratégica, capaz de identificar as suas potencialidades, conjuga-las no espaço regional e no espaço africano, porque há coisas que nenhum Estado africano conseguirá sozinho. Precisamos de trabalhar tudo isso. A própria visão de integração regional [na União Africana] e a forma como nós dialogamos com os nossos parceiros tem que ser reforçada. Mas a nossa força é reforçada quando nós aparecemos como África, mas quando vamos individualmente não temos essa capacidade. São essas questões que são abordadas no livro, além da questão da transformação estrutural da nossa economia. África tem que encontrar caminhos próprios no mercado internacional e em termos de desenvolvimento económico. África tem que apostar nos seus recursos e tem que apostar também no mercado africano. Hoje não podemos só pensar no mercado externo. Há nichos de desenvolvimento que podem acontecer aproveitando as nossas potencialidades e depois termos a capacidade de respondermos para fora. Hoje não podemos seguir o caminho da Ásia sobre as exportações, nem europeu. Não podemos porque os passos já não são os mesmos. Portanto, se hoje formos pela estratégia asiática de promoção de exportações asiática então teremos muitas dificuldades.
Disse há pouco que há uma intervenção forte em quase todas as áreas. Desta defesa que faz da necessidade de repensarmos os Estados, aonde é que fica a questão ideológica?
O problema que vem dos fundadores do nacionalismo africano é que escondem essa parte. Nós entramos quase que num vazio [ideológico]. Penso que este vazio tem sido responsável por muita coisa. Faltou-nos um nacionalismo que não se fecha em si mesmo, mas que é capaz de vir para fora, que é capaz de trabalhar num quadro de Pan-Africanismo renovado.
O que aconteceu?
Depois da Guerra Fria nós passamos a ser completamente dominados pelo neoliberalismo. O domínio do neoliberalismo em África criou várias situações: é a democratização que é feita, imposta num contexto de democracia liberal, são as políticas económicas neoliberais que entram. É a própria problemática da fragilidade dos Estados que tem várias dimensões: a institucional económica, social e tem a dimensão securitária. Pouco a pouco as escolas americanas, sobretudo depois dos atentados de 11 de setembro, foram praticamente subjugados pela visão securitária da fragilidade dos Estados. O que interessa? A estabilidade do mundo, a segurança, mas a fragilidade tem a ver com muita coisa. Aliás, costuma-se dizer que quase todos os Estados no mundo são frágeis, porque apresentam várias fragilidades: estruturais, conjunturais, alguns têm problemas climáticos, outros têm uma economia fraca e vários tipos de problemas que já são [tidos como] naturais. Estamos a ver nesse momento a fragilidade da União Europeia em relação os recursos energéticos. Isso é uma fragilidade. E há atores que dizem os EUA também é um estado frágil.
O que se está a trabalhar nesse momento?
No meu livro introduzi um conceito novo que é: Estados com profundas fragilidades. É dessa que nós estamos a falar.
E qual é o foco?
Se nós vamos analisar as fragilidades vamos encontrar em todos os Estados. Mas [quando] estamos a falar de Estados com profundas fragilidades cuja fragilidade pode ser uma ameaça para as suas populações, para a sua existência política e pode ser uma ameaça para a segurança internacional. É desses Estados que estamos a falar.
E se tivesse que apontar exemplos de que países estaremos a falar exatamente?
Posso dizer que a Guiné Bissau, República Democrática do Congo (RDC), a República Centro Africana são Estados com profundas fragilidades. Há muitos. Alguns até não reconhecem ou não fazem parte do grupo chamado G7+. O que é o Mali e mesmo neste momento o Burkina Faso. A maioria parte dos Estados africanos [tais como] Moçambique se calhar não fazem parte do grupo, mas é um Estado com fragilidade. Quando não consegue controlar o seu território, quando não tem o monopólio da violência, quando tem dificuldades de ter as suas políticas económicas que em grande parte foram capturadas pelas instituições internacionais, quando nós temos falta de recursos para implementarmos políticas públicas então somos estados frágeis [pois] dependemos da cooperação, da ajuda externa e dependemos de tudo. Então, aqui estamos a referir profundas fragilidades. Alguns Estados que estão nessa situação de forma visível pode se ver.
Tem havido repetidos encontros ao nível da União Africana onde se tem discutido vários assuntos do que está a levantar aqui. A minha questão é: O que não está a ser discutido e como devia ser discutido a tal coisa que evenutalmente estará relacionado com o que escreve no seu livro?
Penso que África tem que discutir sobretudo estratégias sobre como, em conjunto, devemos gerir a nossa própria soberania porque parte significativa da nossa soberania foi capturada e nós não encontramos, às vezes, a capacidade de poder definir e agir à volta de uma estratégia concreta. O sentido de unidade e de trabalhar em conjunto ainda resta muito por fazer. [Necessitamos discutir] a nossa dependência mesmo no quadro da União Africana que precisa de financiamento da União Europeia para garantir estabilidade no continente africano. E hoje nós temos a Zona de Integração Económica Africana. Estamos a ver as dificuldades que ela está a ter. [Esses] são instrumentos fundamentais mas por vezes nós não conseguimos nos libertar de alguma soberania mal conseguida que, no fundo, parte dela já foi capturada pelas instituições internacionais do Ocidente. E aquilo que resta nós não sabemos trabalha-la devidamente. Daí que África deve se libertar dessa dependência. Mas falta-nos aquilo que eu chamaria de uma nova geração de líderes africanos que tenham consciência clara de que só juntos podemos trazer um desígnio africano. Se não [for por aí] será muito difícil realizá-la porque temos Estados pequenos, com pouca força e poucos recursos. Aqueles que têm recursos não conseguem transformá-los e dependem muito da exportação desses recursos e nalguns casos ainda vivem o mais grave que é a [questão] da maldição de abundância de recursos que, praticamente, faz com que uma elite capture o poder, o domine e não consegue trabalhar para a modernização das economias para a transformação estrutural, vão dependendo da exportação do petróleo e gás, e, se tiver, de outros minérios. E o próprio modelo de democracia liberal não conseguiu dar muito mais senão permitir legitimar a elite que já estava no poder dando-lhe roupagem democrática mas sem que nós pudéssemos ter, de facto, grandes mudanças em matéria de governança interna e na distribuição de recursos.
Qual é o papel da diáspora nessas questões todas?
A diáspora tem um papel fundamental. Eu fiquei muito contente quando pela primeira vez na estratégia da NEPAD (Nova Parceria para o Desenvolvimento da África) foi colocada a questão da contribuição da diáspora.
Mas que não está a ser usada, ou estará?
O problema é esse. O poder instalado das elites que capturaram os poderes nos nossos países têm dificuldades de lidar com a diáspora.
O que está por detrás desta dificuldade?
É o poder. Se a diáspora africana exige uma melhor governação e está aberta a dar uma contribuição, muitas das vezes pode ser mal recebida pelas pessoas que estão no poder e não querem perder esse poder. É essa dificuldade que faz com que a abertura ainda não seja suficiente. Mas há também outro problema com as nossas diásporas – tenho dito isso nas várias conferências e escrevo muito sobre as comunidades no exterior: essas comunidades também não souberam até hoje se organizar melhor de modo a puder ter força de expressão, incluindo junto da União Africana. Eu como [então] embaixador [da Guiné Bissau] em Bruxelas [lembro-me de que] falamos muito sobre isso: como é que se podia acomodar a nossa diáspora inclusive para participar em grandes fóruns internacionais africanos onde se debate o desenvolvimento, a estabilidade e se fala de democracia e da sociedade civil. Há um défice de organização. Pode ver isso mesmo em Portugal. Quando eu era embaixador da CPLP solicitaram-me a dar algumas conferências e eu falei dessas questões com a nossa comunidade. Alguns não gostaram [de ouvir porque] acham que fazem muito pelo país por enviar apoio humanitário. Mas não é disso que estamos a falar. Quando se lhes pergunta qual é a vossa contribuição concreta num debate africano, com documentos etc, sobre como é que isso deve ser num [contexto] de debate africano sobre como isso deve ser no pais, não existe [resposta]. O que existe é um discurso aqui e acolá, e essa diáspora não se conseguiu unir até hoje. Portanto, é fundamental. Seria um papel importante. Vou dar um exemplo de um país onde a diáspora teve um papel importante e a sua importância contribuiu para a trajetória histórica positiva do país: é o Cabo Verde que ciente das suas deficiências apostou na resiliência rececionária mas, sobretudo, da sua diáspora. Angola não fará isso nunca, nem Guiné Bissau, ou Moçambique ou outros. Estávamos mais fechados em conservar o poder de forma que os que estavam no exterior encararam isso com desconfiança. [Por outro lado], a postura da própria diáspora que, às vezes, foi não de um diálogo mas de hostilização ao poder fez com que durante muito tempo se estivesse a posicionar como oposição [o que não ajudou]. Penso que é preciso virar essa página e, de facto, quer o poder central saber que para construir um país tem que contar com todas potencialidades desse país. Temos que contar com uma elite e essa elite nacional tem que ter a capacidade de fazer um movimento de arrasto para renovar a sociedade e o povo. Isso é o que acontece em todo mundo. Se não houver essa elite capaz – políticos, empresários, sociedade civil, universitários e diáspora, que são gente que tem algo para contribuir -, o movimento de arrasto interno no caminho do progresso quer de democracia, etc terá dificuldades. A diáspora africana de cada um dos nossos países tem também que pensar em tudo o que está a fazer. Não basta apenas criar uma associação. É preciso sentar e avançar para Adis Abeba [sede da União Africana] para dialogar com os Estados africanos. Um a um vocês não resolvem nada.
Falando na União Africana, há necessidade de (re)pensarmos na sua refundação para acomodar todas as propostas que faz no seu livro?
Penso que há um debate interno já há algum tempo. O próprio facto de sairmos da OUA depois de 50 anos e entrarmos numa União Africana que está a ser construída numa perspetiva completamente diferente, penso que pode não ser necessário uma refundação, mas é necessário uma liderança mais esclarecida. É necessário que os Estados africanos tenham a consciência de que aquilo que fez o fracasso do pan-africanismo quando eles se dividiram, alguns cada vez pensando mais no seu poder específico, soberano, no seu espaço e não naquilo que podia ser – a União Africana trabalhava numa perspetiva não só de libertação do continente, mas do seu desenvolvimento numa perspetiva de integração. É preciso, de facto, que essa consciência seja cada vez mais alargada, abrangente, de modo a permitir que os Estados africanos sejam prontos para o desafio de poderem trabalhar em conjunto e fazer frente àquilo que são os seus desígnios. Repara: se estamos a falar de reconstrução de Estados em África nesse momento nós dependemos de estratégias de statebuilding que foram inauguradas pelos países ocidentais. Não fomos nós que as fizemos. Depois vem a fase de implantação. E na sua implantação há os seus próprios interesses. E ultimamente ficou claro que [os países ocidentais e não só] não estão interessados em construir Estados fortes em África. Querem sempre construir Estados capazes de seguir aquilo que são as prescrições, decalcar as transferências das políticas que são feitas e que esses Estados obviamente sejam úteis para o funcionamento do sistema internacional. Mas aí estamos a falar de soberania, da ingerência monetária, ingerência democrática, da reinterpretação da soberania. Então é preciso que os Estados africanos tenham consciência do contexto em que estão, daquilo que perderam, do que lhes faz falta para em conjunto trabalhar para o recuperar, certo de que nenhum Estado fará. Mas é preciso dar força à União Africana que também está com muitas dificuldades internas. Vimos as estruturas internas que foram criadas [algumas] pilotadas por Paul Kagamé. Chegamos até hoje a ter a Zona económica de integração Africana, mas que neste momento funciona com muitas dificuldades. Portanto, temos problemas em vários aspetos que os países africanos só poderão resolver em conjunto. Daí que penso que o regresso do pan-africanismo de uma forma renovada, conceituada será necessário. Pode não se passar por uma refundação. [Imagine] nós vamos refundar hoje a União Africana mas se tivermos os mesmos atores, que são os nossos líderes a pensarem da forma como estão a pensar neste momento, nós teremos muitas dificuldades.
Como é que se encaixa neste debate que está a levantar essa situação que estamos a assistir hoje que é a guerra na Ucrânia e a reconfiguração da própria Ordem Global. É uma oportunidade que deve ser aproveitada?
Considero que é uma oportunidade no sentido em que defendo a posição de que África não pode ser sempre arrastada em não avançar com o seu próprio pé. Até hoje temos sido arrastados pelas estratégias do sistema internacional [primeiro] no contexto da Guerra Fria, do pós Guerra Fria com reformas introduzidas e na Ordem internacional pós Guerra Fria em que estiveram grandes protagonista sobretudo o Banco Mundial e o Fundo Monetário internacional, sempre. Nós não tivemos a nossa própria estratégia. Depois entramos na problemática dos Estados com fragilidades, a questão da estabilidade com peacebulding, a seguir, a questão da (re)construção dos Estádios com statebuilding [pelo que] até hoje nós estamos a viver com a estratégia da China; estamos a ver os EUA a conceber estratégia para África; a Rússia já tinha e ainda vai a estratégia da Turquia, Índia etc. Qual é a estratégia africana para tratar destas questões? Daí que a própria guerra da Ucrânia representa uma oportunidade. A questão da desconstrução da Ordem internacional pós Guerra Fria está em curso.
Qual é o papel de África?
Bom, os nossos Estados um a um não terão qualquer papel. Só África com a sua população, com a sua juventude que representa grande importância para o mundo, com os seus recursos pode participar e pode dialogar. [Exemplo]: Quando houve dificuldades em relação à Rússia [vimos que] a União Europeia virou completamente para África para ir procurar energia, mas África respondeu [individualmente] negociando com Argélia, a Nigéria que passou a ser a [parceira] mais bonita, Angola não sei o quê… Assim não vamos a lado nenhum. Todos estão hoje a namorar Mocambique por causa do gás, disso e não sei mais o quê. Temos que pensar diferente. Esse peso energético de África tem que estar na balança das negociações com a União Europeia. Com esses mesmos recursos, a África como mercado que todos neste momento estão a disputar não pode estar um país ou outro a negociar. Pode haver essas negociações mas tem que ser sempre numa perspetiva de reforçar a capacidade de África para que nós possamos conseguir algo junto dos nossos parceiros, para a parceira funcionar. Aquilo que nós chamamos de parceria de cooperação de facto não acontece porque o outro parceiro é capaz de impor. Nós temos que ter capacidade de fazer com que o nosso potencial político e estratégico esteja em condições de influenciar o comportamento do parceiro.
É possível os Estados africanos terem margem de manobra diante dessas duas potências que estão na vanguarda da reconfiguração da Ordem Internacional, a China e a Rússia?
É possível, se nós formos como África. Se formos [individualmente] – somos cinquenta e tal micro-Estados – teremos dificuldades. Mas se nós conseguirmos dialogar como África o nosso potencial é enorme e o mundo sabe disso, daí que África poderá ter uma voz a dizer nessa reconfiguração quer do centro da economia mundial, que tende a sair do Ocidente para o sudeste asiático, quer no ordenamento em que este tipo de pacto [trará] – a questão da multipolaridade em que o papel dos EUA não será o mesmo, pois vai crescer a China, Rússia… Mas [insisto] África terá dificuldades se não for [ao mercado] como África [no seu todo]. O nosso peso real na economia mundial neste momento é pouco e não há um país africano que tenha um grande peso, mesmo a África do Sul que faz parte do G-20. E ainda é discutível se a economia da Nigéria é maior que a da África do Sul, se é uma ou outra. Há várias questões, mas nós temos que ter a consciência de que de facto temos que trabalhar. Em tudo nesse momento funciona a visão estratégica. África tem que ter a sua visão estratégica, tem que saber como participar nesse debate e, como disse anteriormente, para ela não ser arrastada e poder caminhar, posicionar-se e tirar fruto dessa atração que neste momento colhe nas políticas e visões estratégicas das potências internacionais mais fortes que vêm África com um mercado importante.
O modelo da União Europeia é um modelo a seguir: a construção em si e a forma como está a robustecer-se?
Bom, os modelos normalmente não são pronto a vestir. Têm que ser analisados, ajustados e têm que responder ao contexto histórico em que os países africanos estão neste momento que não é o contexto pós Segunda Guerra Mundial em que a União Europeia foi construída através do ferro e do aço. Foi assim que nasceu a União Europeia e pouco a pouco foi alargando. Neste momento a situação não é a mesma, mas o modelo comunitário em que, de facto, os Estados que lá estão podem começar a trabalhar em conjunto de uma forma cada vez mais integrada fazendo com que [por exemplo] o mercado angolano seja bom para os países de África Central ou Austral, em que Moçambique também tenha vantagens na exportação para África do Sul e outros países [sim]. Se verificar em alguns casos, as nossas exportações vão mais para o Ocidente. Esses problemas têm que ser resolvidos. Os nossos recursos têm que ser para os países africanos onde de facto colhem vantagens. Muitas vezes os mercados africanos são mais difíceis [de penetrar] do que os de outros países. E nós queremos que África desenvolva, mas não pode desenvolver se olharmos só para fora se não a nossa visão é só para fora. Aí só cresce mais a nossa dependência. Para desenvolver África temos que partir dos nossos países para fora. [Exemplo]: de Mocambique para o espaço regional e dai para outros espaços e depois é que nós vamos enfrentar o mundo. Neste momento, se a nossa visão não se centrar em desenvolver aquilo que produzimos vamos ter problemas. Só falando de alimentos: se nós produzirmos alimentos e vendermos no nosso espaço [aí sim]. Se for para produzir alimentos para competir com Ásia [no mercado internacional] nunca vamos conseguir.
E quais são as saídas?
África tem que analisar também uma outra forma de protecionismo que possa facilitar o desenvolvimento das nossas indústrias. Portanto, nós não podemos liberalizar tanto ao ponto de dizer que você e o seu filho de cinco ou três anos de vida vão fazer uma corrida. É que à partida sabemos quem vai ganhar. É isso que o liberalismo muitas vezes não vê. Como é que as nossas indústrias de plástico vão competir com o plástico que vem da China ou da União Europeia? As nossas indústrias não têm capacidade, vão morrer. Nós temos que pensar nisso tudo. Daí que esses passos de integração regional devem servir para muito mais. Os nossos Estados têm que ter essa visão. Muitas das lideranças africanas estão concentrados na preservação dos seus poderes e isso por vezes não liberta para muita coisa.
E esse muito mais passa por construção de uma utopia? É necessário que África tenha nova utopia ou uma utopia?
Penso que sim.
E, na sua opinião, o que seria o desígnio de África neste momento?
O desígnio de África tem que ser alavancado em alguma coisa. Quando começou a colocar as suas perguntas colocou logo pela questão da ideologia. A fragilidade dos nossos Estados hoje é que a ideologia que existia foi considerada obsoleta, mas nós não conseguimos substituí-la por uma nova e nesse espaço entrou em força o neoliberalismo que teve dificuldades da sua apropriação e hoje continuamos todos baralhados. Nós não temos uma visão estratégia própria de desenvolvimento de África que não seja aquela onde a pressão da visão neoliberal existe. Nós não estamos em condições de debater a democracia sem que nos digam que temos que seguir o modelo de democracia liberal que foi construída durante centenas de anos aqui na Europa. Portanto, a liderança africana, os investigadores africanos todos têm que ter um debate franco e dizer assim: nós precisamos de uma ideologia amiga de desenvolvimento. E nenhuma ideologia pode ser boa sem a cultura. E uma ideologia vai responder sempre ao contexto para que as populações o possam apropriar. Esse trabalho foi durante muito tempo minado pelo contexto internacional da Ordem neoliberal que dominou o mundo durante os anos 80, 90 até esta parte. Algumas vozes africanas que tentaram contestar não conseguiram porque nunca se transformou em política do Estado. As nossas universidades o que é que ensinam hoje? A própria imprensa africana tem esse dilema também: podiam contribuir muito nesse debate e tentar restaurar alguma coisa do passado. E a democracia e as eleições nos trouxe também muitas dificuldades. Há muitas pessoas que estão a chegar ao poder sem a mínima preocupação a partir do populismo, ou de uma vantagem étnica e essas pessoas não podem contribuir. São elas que estão à frente mas não podem contribuir para um debate africano nem numa visão estratégica nem no aspeto do pan-africanismo nem de uma ideologia e contrariar aquilo que é a tendência de exportação de políticas para África e da imposição do neoliberalismo. Vejo alguns líderes africanos tentando fazer isso em reuniões mas estão em minoria. Muitos não querem perder tempo com isso. (MM)